“Como Maçãs de Ouro em salvas de prata, assim é a palavra dita a seu tempo.” (Pv. 25.11)

“Feliz o homem que acha a sabedoria e o homem que adquire o conhecimento;
... é Árvore de Vida para os que a alcançam, e felizes são todos os que a retêm." (Pv. 3:13,18)

terça-feira, 30 de abril de 2013

ARTE CRISTÃ



ARTE CRISTÃ
(Jacques Maritain)

Pelas palavras “Arte Cristã”, eu não quero dizer “arte da igreja”... Eu quero dizer arte Cristã no sentido da arte que carrega consigo o caráter do cristianismo... a arte Cristã é definida por aquele em quem ela existe e pelo espírito de quem ela emana: alguém diz “arte Cristã” ou a “arte de um Cristão” assim como alguém pode dizer... “arte do homem”. Ela é a arte de uma humanidade redimida. Ela está plantada na alma Cristã, às margens das águas correntes, debaixo do céu das virtudes teológicas, em meio às brisas dos sete dons do Espírito. É natural que ela produza fruto Cristão.

Tudo pertence a ela, tanto o sagrado quanto o secular. Ela está em casa onde quer que a imaginação e o gozo do homem se estenderem. Sinfonia ou Ballet, filme ou novela, paisagem ou retrato, libreto de teatro de bonecos ou de ópera, ela pode tanto aparecer em qualquer uma destas, quanto pode aparecer nos vitrais e estátuas de igrejas.

Mas pode ser objetado... a arte não é pagã desde o seu nascimento e está vinculada ao pecado – do mesmo modo que o homem é pecador desde o seu nascimento? Mas a graça cura a natureza ferida. Não diga que uma arte Cristã é impossível. Diga, antes, que ela é difícil, dobradamente difícil – quatro vezes mais difícil, porque é difícil ser um artista e porque é muito difícil ser um Cristão, e porque a total dificuldade não é simplesmente a soma, mas o produto dessas duas dificuldades multiplicado um pelo outro: pois esta é uma questão de se harmonizar dois absolutos. Diga que a dificuldade se torna tremenda quando toda a sua época vive longe de Cristo, pois o artista é grandemente dependente do espírito da sua era. Mas desde quando a coragem já esteve em falta na terra?

Se você deseja produzir uma obra de arte Cristã, então seja um Cristão, e simplesmente se esforce para fazer uma bela obra, na qual permeará o seu coração; não tente um “fazer Cristão”.

Não faça a tentativa absurda de dissociar em si mesmo o artista e o Cristão. Eles são um, se você é verdadeiramente Cristão, e se a sua arte não está isolada da sua alma por qualquer sistema de estética. Mas aplique apenas o artista à obra; precisamente porque o artista e o Cristão são um, a obra derivará inteiramente de cada um deles.

Não separe a sua arte da sua fé. Mas deixe distinto o que é distinto. Não tente unir pela força o que a vida une tão bem. Se você fosse fazer da sua estética um artigo de fé, você estragaria a sua fé. Se você fosse fazer da sua devoção uma regra para atividade artística, ou se você fosse transformar o seu desejo de edificar em um método para a sua arte, você estragaria a sua arte.

Não obstante, a arte será Cristã e revelará na sua beleza a interior reflexão irradiada pela graça, se apenas ela transbordar de um coração abundante de graça. Pela virtude da arte que a alcança e rege diretamente pressupõe-se que o apetite está corretamente disposto com relação à beleza da obra. E se a beleza da obra é Cristã, é porque o apetite do artista está corretamente disposto com relação a tal beleza e porque na alma do artista, Cristo está presente pelo amor. A qualidade da obra é, aqui, a reflexão do amor do qual ela emana, e o qual move a virtude da arte instrumentalmente... Fútil seria, portanto, tentar encontrar uma técnica, um estilo, um sistema de regras ou um modo de trabalho que seriam os da arte Cristã. A arte que germina e cresce no homem Cristão pode admitir-se de uma infinidade destes. Mas estas formas de arte terão todas uma semelhança familiar e todas diferirão substancialmente das formas não-Cristãs de arte.

- Arte e Escolasticismo.

Notre Dame: Imprensa da Universidade de Notre Dame, 1974.

        Extraído da obra: A Imaginação Cristã. Leland Ryken (editor). Shaw Brooks, 2002.  


Tradução: Anna Layse A. Davis.     

terça-feira, 23 de abril de 2013

O Livro da Queda para Crianças - HISTÓRIA 2: A PROIBIÇÃO

O Livro da Queda do Homem para Crianças Thomas H. Gallaudet 



História 2

A Proibição
 
 

 “Proibição” - você pode me dizer - “eu não conheço essa palavra”.
Mas você conhece muito bem a coisa que ela quer dizer. Você sabe quando o seu pai lhe diz, por exemplo, para não subir na sua mesa e mexer com os livros e papéis que estão em cima dela? Ele pode ter lhe dado permissão para brincar no outro canto da sala, mas ele lhe proibiu de chegar perto da mesa. E quando ele se levantou da mesa e saiu da sala, ele lhe disse para se lembrar dessa proibição.
Ou pode ser que uma mãe tenha dito para a sua filha que ela deveria sair e passear no jardim, olhar para as flores, e colher algumas flores de todos os canteiros, menos de um, para fazer delas um belo buquê. A menininha era obediente, e não se esqueceu da proibição. Ela não tocou em nenhuma flor do canteiro das tulipas, pois era desse canteiro que a sua mãe a havia proibido de colher as flores.
Você pode pensar em algumas coisas que você tem sido proibido de tocar ou de fazer? Tente, veja se você consegue se lembrar de alguma proibição.
Agora, então, você pode me entender quando eu lhe digo que Deus proibiu Adão e Eva de comer do fruto de uma só árvore que estava plantada no meio do jardim em que eles moravam.
Era uma proibição que eles podiam facilmente entender. Ali estava a árvore, bem à vista. Deus a apontou para eles, para que eles não confundissem qual era a árvore de que estava falando.
Era uma proibição que eles podiam facilmente lembrar. Cada vez que eles passavam pela árvore, eles mal podiam olhar para ela sem pensar que essa era a única árvore em todo o jardim da qual eles foram proibidos de comer.
Era uma proibição que eles sabiam que Deus tinha todo o direito de fazer. O jardim, e tudo o que ali crescia, era de Deus. Ele tinha feito as árvores e as frutas deliciosas que estavam nelas. Ele tinha feito o sol brilhar e a água cair gentilmente sobre elas e Ele as tinha feito crescer. Ele poderia fazer o que bem quisesse com o que era seu.
Era uma proibição da qual Adão e Eva não podiam nem pensar em reclamar. Eles tinham o suficiente para não precisar usar da fruta daquela única árvore. Deus havia sido tão bom de ter dado permissão para eles comerem de todas aquelas frutas mais doces e mais bonitas com as quais as demais árvores estavam carregadas! Ele havia mostrado o quanto Ele os amava ao criá-los – dando-lhes corpos tão interessantes e úteis, e almas que iriam viver para sempre e crescer em bondade e alegria, se elas continuassem a amar e a obedecer a Deus. Ele os havia colocado no lar mais agradável e estava cuidando deles como um pai gentil e bondoso.
Era uma proibição para a qual eles certamente sabiam que havia uma boa razão. Deus poderia com ela estar querendo que eles mostrassem o quanto estavam prontos e desejosos de obedecer aos seus mandamentos, e quão alegremente eles estavam mantendo distância do que Deus havia proibido, sem querer nem tocar naquele fruto.
Se Deus não tivesse feito tal proibição, como eles poderiam mostrar tão bem a sua obediência? Uma das melhores maneiras de você mostrar que você ama o seu pai, não é justamente tendo o cuidado de não fazer uma coisa que ele proibiu?
Também pode ser que Deus estivesse querendo ver se eles eram realmente filhos obedientes – pode ser que Deus os estivesse testando, e mostrando aos anjos e a outros seres o que Adão e Eva fariam nessa prova.
Eles não podiam ter dúvida nenhuma de que um ser tão bondoso como Deus tinha algum bom motivo para ter lhes dado essa proibição.
Era uma proibição que não era difícil de eles obedecerem. Não era uma coisa difícil que eles precisavam fazer. Era simplesmente uma coisa que não era para ser feita, não era para eles tomarem do fruto de uma árvore.
Como você acha que você se sentiria se estivesse naquele bonito jardim, e como Adão e Eva, fosse proibido de comer do fruto da árvore que estava no meio do jardim?
Talvez você esteja achando que você não teria reclamado nem um pouco dessa proibição, e teria ficado perfeitamente satisfeito, e grato a Deus por toda a sua bondade.
Mas será que você nunca se sentiu insatisfeito e descontente quando os seus pais ou professores lhe proibiram de fazer ou de mexer em alguma coisa? - Você nunca achou uma proibição muito difícil, e reclamou dela? – Pense um pouco, e você vai ver que, se você estivesse sob a mesma proibição que Adão e Eva estavam, você também iria achar ela muito dura, e iria desejar que Deus não a tivesse dado.
Nós vamos descobrir, nas histórias mais à frente, como Adão e Eva se sentiram e o que eles fizeram. E vamos tentar ver, também, se você se sentiria ou faria alguma coisa melhor se estivesse no lugar deles.

 
Para Colorir:
 


segunda-feira, 22 de abril de 2013

A Mãe no Lar. Capítulo 2 - Autoridade Materna - Parte 1: A Importância da Obediência


Nota da Tradutora:
Tomei a liberdade de dividir esse capítulo em duas partes, e introduzi alguns subtítulos, com vistas a uma apresentação mais didática dos pontos tratados pelo autor, e farei o mesmo com o próximo capítulo. Assim, o assunto da Autoridade Materna terá quatro partes, que disponibilizarei em quatro postagens, sob os seguintes títulos:
Parte1: A Importância da Obediência
Parte 2: Estabelecendo o Hábito da Obediência
Parte 3: Lidando com Situações de Confronto e com Diferentes Disposições da Criança
Parte 4: A Justiça e a Bondade na Disciplina

A Mãe no Lar. John Abbot
Capítulo 2-Autoridade Materna
Parte 1: A Importância da Obediência
"Mother and Child" by Ferdinand Hodler
Até o momento, eu tenho buscado mostrar à mãe como a sua felicidade depende do caráter bom ou mal de seus filhos. As suas reflexões próprias têm, sem dúvida, impressionado esse assunto profundamente em seu coração. A questão que provavelmente surgiu na sua mente, enquanto você lia o primeiro capítulo, é: “De que maneira eu devo governar os meus filhos, com o fim de assegurar a virtude e a felicidade deles?”. Essa é a questão que eu buscarei responder a partir de agora.

Princípio
A obediência é absolutamente essencial ao governo familiar apropriado. Sem ela, todos os seus demais esforços serão em vão. Você pode orar por e com os seus filhos; você pode se esforçar para instruí-los na verdade religiosa; você pode ser incansável em seus esforços para fazê-los felizes, e para conseguir a afeição deles. Mas se eles tiverem o hábito da desobediência, as suas instruções se perderão, e o seu trabalho será em vão. E por obediência, eu não me refiro ao ceder apático e vagaroso à ameaças repetidas, mas à aquiescência imediata e alegre às ordens dos pais. Tampouco é suficiente que a criança venha a ceder a seus argumentos e persuasões. É essencial que ela se submeta à sua autoridade.
Exemplos
Vou dar-lhes um exemplo para ilustrar essa observação. A sua menininha está doente; você vai levar-lhe o remédio que foi prescrito para ela, e isso ocasiona o seguinte diálogo:
“Olha, filhinha, eu tenho um remédio para você.”
“Eu não quero tomar esse remédio, mãe”.
“Ô, filhinha, toma o remédio, sim, que ele vai fazer você se sentir melhor.”
“Não vai não, mãe; eu não quero isso.”
“Vai sim, minha filha; o médico disse que sim.”
“Mas ele tem um gosto horrível, e eu não quero tomar.”

A mãe continua com suas persuasões, e a criança persiste em sua recusa. Depois de um longo e cansativo conflito, resta à mãe ou jogar o remédio fora, ou recorrer à compulsão, e forçar a criança a engolir o remédio amargo. Assim, ao invés de recorrer à sua autoridade própria suprema, ela está apelando para a razão da criança. E, sob essas circunstâncias, a criança, é claro, recusa-se a se submeter.
Não muito tempo atrás, outra mãe, sob circunstâncias similares, sem conseguir persuadir a sua criança a tomar o remédio, e sem ter resolução suficiente para compeli-la, jogou o remédio fora. Quando o médico veio visitar, ela ficou com vergonha de admitir sua falta de governo e, portanto, não contou para o médico que o remédio não foi dado. O médico, encontrando a criança pior, deixou outra prescrição, supondo que o remédio prévio havia sido administrado apropriadamente. Mas a criança não tinha a menor intenção de ser convencida de que ela precisava tomar a dose enjoativa, e os esforços renovados da mãe foram inúteis. Mais uma vez, essa mãe, afetuosa e imprudente, mas cruel, jogou fora o remédio, e a febre veio a arder cada vez mais alta nas veias da criança. Mais uma vez o médico retornou, e ficou surpreso de descobrir que seus remédios foram ineficazes, e que a pobre criança sofredora estava à beira da morte. A mãe, quando foi informada de que a criança estava para morrer, em sua agonia, confessou o que havia feito. Mas era tarde demais. A criança faleceu. E você acha que essa mãe olhou para aquele corpinho pálido com uma agonia normal? Você acha que nunca passou pela sua mente que foi ela quem destruiu a sua criança? Os médicos lhe dirão quantas crianças já perderam suas vidas assim.* Estando desacostumadas à obediência quando estavam com saúde, elas se tornaram ainda mais avessas a ela quando doentes. Os esforços que são feitos para induzir uma criança teimosa a tomar remédio, frequentemente produzem uma agitação tão grande e capaz até mesmo de desfazer totalmente os efeitos do remédio; e assim a mãe é com frequência deixada a chorar sobre a sepultura de sua criança, simplesmente porque ela não ensinou aquela criança a obedecer.
O Dilema: Explicar ou Obrigar?
Sem dúvida é o dever dos pais convencer os seus filhos da razoabilidade e da propriedade de seus requerimentos. Isso deve ser feito para instruí-los, e para familiarizá-los com a obrigação moral. Mas sempre deve haver autoridade suficiente para impor obediência imediata, quer a criança possa ou não ver a razão do requerimento. De fato, é impossível governar uma criança por mero argumento. Haverá muitos casos em que ela será incapaz de ver a razoabilidade da ordem; e com frequência os seus desejos serão tão fortemente opostos ao dever, que todos os esforços para convencê-la serão em vão. A primeira coisa, portanto, a ser buscada, é trazer sua criança à perfeita submissão. Ensine-a que ela precisa lhe obedecer. Algumas vezes, dê as suas razões; outras vezes, não. Mas que ela entenda perfeitamente que ela deve fazer o que é mandada. Acostume-a a aquiescer à sua vontade imediatamente e de bom grado. Isso é obediência. E isso é absolutamente essencial ao bom governo familiar. Sem isso, a sua família irá apresentar uma cena continuada de barulho e confusão; o trabalho de criar os seus filhos será quase insuportável, e, com toda probabilidade, o seu coração será quebrado pela futura licenciosidade e ingratidão deles.
Para ilustrar mais completamente o que eu quero dizer com esse ponto de que nem sempre é melhor dar razões às crianças, permitam-me supor um caso. Um menino chega à sua mãe para pedir permissão para ir brincar na rua de tarde.
“Não, meu filho”, diz a mãe, “eu preferiria que você não fosse. Aqueles meninos da rua são ruins, e você vai aprender maus hábitos. Eu acho melhor você ficar em casa”.
“Mas, mãe, eu não acho que eles são meninos ruins. O William e o João estão lá, e eu não vejo por que eu não poderia ir.”
“Porque eles falam palavrão, e são mal-educados. Além disso, está frio, e eu acho que não seria agradável para você sair essa noite. Eu acho que você ficará muito mais feliz se ficar em casa conosco.”
“Então, mãe, se eles falarem palavrão, eu volto pra casa. É que eles vão ter o jogo que eu mais gosto, e eu queria tanto ir.”

Assim, surge uma discussão prolongada que provavelmente termina com a vitória do menino. A mãe não percebe que todos os seus argumentos são completamente anuladas pelo forte desejo do menino de gratificar a sua vontade, desejo este que o intoxica completamente. É perfeitamente vão, num momento desses, tentar convencê-lo. Ele está totalmente cego.
A Solução
Tomando o exemplo que acabamos de supor, o único caminho apropriado é a mãe dizer com mansidão, mas com firmeza:
“Não, meu filho, você não pode ir”.
“Porque não, mãe? Eu quero ir”.
“Eu não posso lhe dizer o porquê no momento. Eu vou conversar sobre isso com você outra hora.”

Então a mãe deve esperar até que o filho tenha passado uma tarde alegremente em casa, e logo antes dele ir dormir, quando a consciência dele está em paz, e a sua mente predisposta em favor do dever e da felicidade doméstica, ela então pode falar para ele a razão por que ela o mantém longe da rua e das cenas barulhentas e vergonhosas de tentação e de pecado que acontecem ali.
Que todos os pedidos como estes por gratificações pecaminosas ou perigosas sempre sejam decididos por autoridade, e não por persuasão, a menos, como foi sugerido acima, que você queira deixar o seu filho a decidir por si mesmo, a fim de que ele aprenda sabedoria pela experiência. Isso, contudo, deve ser feito muito raramente, e com muito cuidado; ou você irá descobrir que enquanto você estava querendo que ele ficasse enojado com os males do pecado, você acabou endurecendo a sua consciência para a sua culpa.
_______________________
*talvez o cenário não seja o mesmo nos dias atuais, quando é possível a hospitalização e administração intravenosa de medicamentos, mas talvez uma aplicação atual desse exemplo seja a tendência dos pais cederem à vontade da criança na sua alimentação, dando-lhe apenas o que ela gosta, como “fast food”, excesso de doces e de comidas processadas, etc., e os resultados dessas indulgências têm afetado de maneira grave, embora talvez mais lentamente, a saúde das crianças, o que tem sido comprovado pelo número crescente das diagnoses de câncer, diabete, obesidade patológica, entre outras coisas, em crianças e adolescentes.

sábado, 20 de abril de 2013

Capítulo 6: As Três Colunas da Cosmovisão Bíblica

Fundamentos Filosóficos de uma Educação Bíblico-Reformada


Nota ao Leitor:
O capítulo anterior, entitulado “O que é uma Filosofia da Educação Reformada”, tratou das formas mais comuns de se abordar a relação entre Religião, Filosofia e Educação, e destacou duas bem comuns: a síntese entre o pensamento cristão e o não-cristão, que busca uma visão unificada da realidade a partir do aproveitamento das descobertas científicas e filosóficas seculares que não parecem contradizer a fé cristã; e a co-existência pacífica, que mantém o conhecimento e a fé como dois reinos separados e independentes um do outro. Demonstramos por que essas abordagens são inaceitáveis para o desenvolvimento de uma filosofia educacional distintamente reformada, a qual deve seguir o caminho da antítese religiosa, cuja visão de mundo constrói, desde o princípio, sob os fundamentos bíblicos. Esse capítulo analisará, portanto, os três eixos de fundamentos que formam a cosmovisão cristã, a saber, os pressupostos sobre a Bíblia, sobre Deus e sobre o Homem, e como cada um deles embasa o pensamento educacional cristão que buscamos desenvolver.

 

Capítulo 6

A Cosmovisão Bíblico-Reformada



Os pressupostos teológicos que formam a cosmovisão bíblica devem ser buscados na fé reformada. A teologia reformada se apresenta como uma interpretação fidedigna, coerente e unificada da doutrina bíblica, como sistematizada nos símbolos de fé reformados, em especial os calvinistas. Dentre esses artigos de fé unificadores encontram-se os credos, as Confissões de Fé e os catecismos maiores e menores, entre os quais se destacam os símbolos de fé de Westminster[1].
Muitas são as doutrinas e ênfases adotadas pelas Igrejas Reformadas com base nestes símbolos de fé. Uma idéia geral do escopo dessas doutrinas é evidenciada na da síntese conhecida como “os Solas da Reforma”, que utiliza-se das expressões latinas: Sola Scriptura (“Somente as Escrituras”- aponta para a Supremacia e Autoridade da Bíblia), Solo Cristi, (“somente Cristo”- aponta para a Centralidade de Cristo), Sola Fide, (“somente a fé”- resume a doutrina da justificação somente pela fé), Sola Gratia (“somente a graça”- enfatiza a Primazia da Graça de Deus) e Soli Deo Glória (“Glória Somente a Deus”- que estabelece a Soberania e Glória de Deus).
A abordagem mais sistemática das Confissões de Fé e dos Tratados de Teologia Sistemática organizam as doutrinas reformadas bíblicas em temas amplos como a Bibliologia, (as doutrinas referentes às Escrituras), a Teontologia (que estuda a Deus e Sua Obra), a Antropologia, a Cristologia, a Soterologia (doutrina concernente à Salvação), a Eclesiologia (que estuda a Igreja), a Escatologia (que estuda as coisas futuras), e a Pneumatologia (que trata especificamente da pessoa e obra do Espírito Santo).
Todas essas doutrinas e campos de estudos apresentam implicações para a educação reformada, diretas ou indiretas. O conjunto delas e a perfeita relação entre elas forma um sistema unificado chamado de cosmovisão ou mentalidade reformada, o qual tem conseqüências para todas as áreas da vida. Tendo em vista o propósito e aplicação educacional desta abordagem doutrinária, e a extensão dos temas teológicos, serão destacados neste capítulo apenas três temas gerais, que abraçam algumas das principais doutrinas reformadas que têm implicações para a educação reformada. Exporemos os pressupostos relacionados às Escrituras, os pressupostos relacionados a Deus e os pressupostos que tratam do Homem, na perspectiva da fé reformada, buscando extrair deles e indicar alguns princípios embasadores e norteadores da educação cristã.

6.1 A Centralidade da Bíblia para a Educação Reformada


A doutrina acerca das Escrituras Sagradas é o pressuposto fundamental e o sustentáculo da fé reformada, visto que ela estabelece os fundamentos e constitui a fonte de onde todas as demais doutrinas são extraídas e sustentam-se.
Ao invés de um mero livro humano antigo, compêndio histórico ou científico, fonte de conselhos morais e máximas da virtude, a Bíblia, na concepção reformada, é tida como a própria Palavra de Deus, revelada soberana e sobrenaturalmente aos homens.
A doutrina da Bíblia é, na verdade, parte da doutrina mais ampla da Revelação de Deus. Desde que Deus é um Ser infinito, grandioso, espiritual, é impossível ao homem, criatura mortal e finita, chegar ao conhecimento de Deus por seu próprio entendimento, sentidos e sabedoria. Por isso aprouve a Ele revelar-se a Si mesmo aos homens. Ele o fez pela sua revelação geral[2], ou seja, no mundo criado, cuja perfeição e grandiosidade atestam da existência de um Criador e apontam para seus principais atributos, e cujo conhecimento torna os homens indesculpáveis perante Deus, embora esse não seja um conhecimento salvífico. E Deus se revela de modo profundo e salvífico na sua revelação especial, a Bíblia.
A doutrina mais importante a respeito da Bíblia é a da sua inspiração divina, a qual assevera que o verdadeiro autor da Bíblia é Deus, que pelo Espírito Santo inspirou os seus autores humanos a registrar de maneira inerrante a sua mensagem, guiando-os a toda verdade em cada palavra que selecionavam, embora não lhes tirando do seu contexto e peculiaridades pessoais (LLOYD-JONES, 1997, p. 39)[3].
Da doutrina da inspiração decorre que as Escrituras são infalíveis, verdadeiras e portanto, autoritativas, pelo que devem ser cridas e obedecidas. São também suficientes, no sentido de que, embora a Bíblia não constitua um livro completo de história do mundo, nem um livro de ciência geral, nem tampouco um manual de regras de vida, de casamento, de criação de filhos, de educação, ou de nenhuma outra área, (visto não ser esse o seu propósito, e sim o de contar a história da redenção), ela é de tal natureza que “todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela” (CONFISSÃO..., 1991, p. 8). E essas mesmas coisas necessárias à salvação e à vida são suficientemente claras e acessíveis na Bíblia a todos independentemente de gênero, raça, idade, posição social e acadêmica, desde que o Espírito Santo esteja iluminando o leitor. Por isso a Bíblia é comparada a um oceano, cujas águas são profundas o suficiente para que os eruditos nunca cessem de perscrutá-las e conhece-las, e suas praias são rasas o suficiente para que crianças na fé aventurem-se e aproveitem dela.
Em resumo, a fé reformada vê na Bíblia não um livro, mas o Livro divino, santo, perfeito, cuja autoridade e suficiência tornam-no a única regra de fé e de prática (O CATECISMO..., 1991, p. 166) para os homens, que nela encontram “tudo o que o homem deve crer sobre Deus e o dever que Deus requer do homem” (O CATECISMO..., 1991, p. 168). Ela é autoridade final e juiz supremo de todas as questões humanas, e com ela não competem as tradições ou razão humanas. É isso que significa afirmar “Sola Scriptura”.
O ensino reformado baseia-se na doutrina bíblica da revelação para afirmar que, se tanto a natureza como a Bíblia são produto da revelação de um mesmo Deus único e verdadeiro, não pode haver contradição entre esses dois livros divinos. Segue-se que conhecer a Deus, que é o fim principal do homem, envolve o conhecimento das obras divinas na criação e na providência, e da Palavra de Deus.
Esse é o motivo porque ciência e religião não podem ser dissociados, mas se complementam. A chave dessa equação é que a Bíblia e seus ensinos fornecem os óculos, as lentes apropriadas com a qual o homem pode ler o livro da natureza de maneira apropriada. E quando, no decorrer da história e dos estudos humanos, parece haver discordâncias, os homens precisam ser humildes em reconhecer que certamente há erro humano de interpretação, ou da parte dos cientistas, ou da parte dos teólogos, pois Deus é verdadeiro. Portanto, a educação deve incluir o estudo da natureza e da Palavra, pois uma revelação elucida, fundamenta e completa a outra. Temos aqui uma indicação para o conteúdo curricular de uma escola cristã, e uma base para a inter-relação entre as disciplinas.
A doutrina da clareza e simplicidade das Escrituras e o entendimento de que devem e podem ser conhecidas e estudas por todos foi o fator que motivou os reformadores em sua reforma educacional, na tentativa de ao menos alfabetizar a todos para que pudessem ler as Escrituras, e nos seus esforços de traduzirem e disponibilizarem a Bíblia para quem desejasse. “Todos”, afirmavam eles, devem ter acesso a Educação, para aprenderem a ler e a entender a Palavra de Deus.
A origem divina e o caráter autoritativo da Bíblia levam à conclusão de que a Bíblia, sendo a única e suficiente regra de fé e prática em todas as esferas da vida humana, é autoridade suprema para regular também a educação, na definição de seus princípios, propósitos, ensino, conteúdo, razão de ser ou métodos. Cabe um parêntesis aqui: é claro que a Bíblia não consiste num manual de educação. Não dirá o nome de cada disciplina ou método, mas ela fornece princípios gerais a serem seguidos e isso também implica que nenhum método, conteúdo ou filosofia educacional deve ser aceito se tiver pressupostos contrários ao ensino Bíblico como um todo.
Quanto ao currículo, por exemplo, os reformados entendem que o conteúdo da Bíblia constitui conteúdo essencial, embora não único, da educação cristã. E isso tanto direta quanto indiretamente. Diretamente, significa que as doutrinas bíblicas devem ser ensinadas às crianças, pois são essenciais à sua salvação, e à sua formação para a vida nesse mundo, em suas atividades diárias, profissionais e em suas diversas relações. Da Bíblia se extraem também os únicos princípios morais sólidos e verdadeiramente eficazes para a sociedade como um todo.
Indiretamente, o conteúdo bíblico é importante para a educação na medida em que se entende que a Bíblia é indispensável tanto ao conhecimento como principalmente, para dar sabedoria, a qual só pode ser adquirida na Bíblia, visto que “o temor do Senhor é o princípio do saber” (A BÍBLIA..., Provérbios 1:7) e que a Bíblia realça a sabedoria de Deus. A sabedoria de Deus pode ser vista nas obras divinas da Criação, Providência e Redenção. Além disso, Deus é a própria sabedoria e sua fonte e os provérbios bíblicos são um precioso exemplo de sabedoria divina.
A fé reformada postula ainda que o entendimento da Bíblia só é possível mediante a interação da razão (ou seja, o estudo diligente, o trabalho intelectual) com a iluminação do Espírito Santo, que é seu autor primário (em virtude da natureza desse livro, divino-humano), indicando na expressão “orare e labutare” (orar e labutar) a dupla responsabilidade dos alunos em serem diligentes ao empenhar esforços no bom uso de sua razão, e ao mesmo tempo em dependerem do favor, graça e iluminação divinas.
Assumindo ainda o papel de incentivadora da educação, a Bíblia, de maneira bem direta, ordena a educação e a delineia em princípios gerais, como constatado no mandamento aos pais em Deuteronômio 6:4-7 e no Salmo 78:3-7, por exemplo. Dentro desses princípios gerais, e numa verdadeira concepção de “desenvolvimento integral do ser humano”, a Bíblia dá importância ao aspecto mais desprezado pela educação, e no entanto, o mais importante de todos, porque é eterno: o aspecto espiritual da criança, ou seja, a sua alma. Na Bíblia encontramos diversos ensinamentos sobre a importância da alma, os quais encerram preceitos pedagógicos: “o que rejeita a instrução menospreza a própria alma, mas o que escuta a repreensão adquire entendimento” (A BÍBLIA..., Provérbios 15:32). E mais adiante no mesmo livro, capítulo 19, verso 8: “O que adquire entendimento ama a sua alma; o que cultiva a inteligência achará o bem”, e ainda em Marcos 8:36-37: “Pois, que aproveitaria ao homem ganhar todo o mundo e perder a sua alma? Ou, que daria o homem pelo resgate da sua alma? “
E finalmente, mais um uso educacional da Bíblia reside no fato de que a ela contém a lei moral de Deus, resumida nos 10 mandamentos, que deve ser ensinada às crianças por pormenos 3 motivos: 1) O usus practicus: A Lei de Deus está imbuída de grande valor pedagógico. A Bíblia afirma que a Lei é nosso aio (pedagogo) (HEICK, 1965, p. 450)[4], para nos conduzir a Cristo. 2) Em outro sentido, a Lei de Deus, sendo um reflexo da santidade do próprio Deus, contém de maneira claríssima e bastante abrangente os principais deveres dos homens para com Deus e para com os seus semelhantes, aos quais o crente deve alegre obediência (DE WITT, 2001, p.22). 3) O usus políticus da Lei de Deus, que se for ensinada, aprendida, respeitada e obedecida pelas pessoas, têm implicações para a sociedade em geral.           

6.2 A Pessoa e a Obra de Deus como Centro da Educação Reformada

           

A fé reformada é construída em torno da pessoa de Deus, como revelado na Bíblia e tem profunda reverência pela Sua pessoa, Seus atributos e Sua obra, de maneira que todas as suas doutrinas concorrem necessariamente para esse fim, a glória de Deus: “Soli Deo Glória”. Terry  L. Johnson apresenta esta característica citando o eminente teólogo B. B. Warfield:
O Deus da Igreja Reformada é, de fato, um Deus Grande. B. B. Warfied, o maior dos teólogos da escola de Princeton, disse: “É a visão de Deus e da Sua Majestade... que jaz no fundamento da plenitude do pensamento calvinista” (Calvino e Agostinho, 491). Se fosse para alguém isolar uma característica distintiva da Fé Reformada, todo mundo haveria de concordar que esta seria a grandeza soberana de Deus. (2001, p. 41)
A visão de mundo reformada assinala que tudo existe para a glória de Deus e tudo começa e termina com Deus. Romanos 11:36 (Bíblia Sagrada, 1993) afirma: “Porque dele, por ele e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém”.  A glória de Deus é o fim da pregação reformada, do culto reformado, da vida de todo crente e como não poderia deixar de ser, da educação reformada. O fim da própria existência humana é expresso na famosa resposta à primeira pergunta do Catecismo Menor “Qual é o fim principal do homem?: O fim principal do homem é glorificar a Deus e goza-lo para sempre” (O CATECISMO..., 1991, p. 389). Por isso o entendimento da Pessoa e da Obra de Deus é vital para a pedagogia reformada.
A fé reformada não somente estabelece a existência e a glória de Deus, mas apresenta quem é o Deus bíblico, os seus atributos, a natureza do seu ser. Os atributos referentes e exclusivos ao ser de Deus são chamados atributos ontológicos. Deus é um ser único e pessoal, infinito em seu ser e perfeições e fonte de todo bem[5]. Ele é Espírito puro, incorpóreo e portanto invisível, a não ser na pessoa divino-humana de Cristo. Deus é ainda eterno e onipresente. Ao mesmo tempo em que é imanente e é a fonte da vida e energia de toda a criação, Ele transcende a ela e não se confunde com ela, reinando sobre ela como supremo Senhor.
É um Deus onisciente e onipotente, que tudo sabe e tudo pode, de maneira que todos os mistérios do universo estão patentes a Seus olhos, bem como todos os acontecimentos históricos, ações e até a própria vontade humana, os quais, em última instância, são por Ele determinados. Um desdobramento do conhecimento ilimitado de Deus é a Sua sabedoria, aquele tipo de conhecimento correto e útil, da qual Deus é a própria fonte.
De sua perfeição e eternidade decorre a imutabilidade de Deus, pois o que é perfeito não tem como melhorar nem como se corromper, Logo, Ele é imutável em seu ser, atributos, vontade, etc. Mas embora seu caráter nunca mude, Seu procedimento com as pessoas muda e ao lidar com os homens, Ele varia as suas ações.
Finalmente, o Deus da fé reformada é apresentado como auto-existente e absoluto, soberano em Sua vontade, completamente livre e absoluto, de modo que nada nem ninguém lhe pode resisistir. E ainda se poderia acrescentar a glória de Deus, “a maneira bíblica de descrever Sua grandeza, Seu esplendor, Sua majestade”. (LLOYD-JONES, 1997, p. 94), a qual decorre da união de todos os seus demais atributos em Seu ser.
Algumas breves indicações podem levar o leitor a considerar sobre a intrínseca ligação da pessoa de Deus com a concepção educacional cristã. De certa forma, toda a teologia e vida cristã dependem dessa doutrina fundamental de quem é Deus, em seu ser e caráter.
Quanto ao ser de Deus, o reconhecimento de que Ele é uma pessoa, com razão, vontade, sentimentos, etc., e que esses atributos são perfeitos e são a causa de Deus ter criado o homem um ser racional, com vontade e sentimentos segundo sua própria imagem, torna o homem dependente e submisso a essa Pessoa por excelência e o leva a reconhecer que, como uma pessoa, Deus se relaciona com os homens e com a criação de uma maneira especial e única em virtude disso, o homem tem de prestar contas a Deus por todos os seus atos. A ética cristã na educação se fundamenta nessa premissa da responsabilidade humana para com um Deus superior e pessoal.
De que Deus é perfeito e infinito em todos os seus atributos, extrai-se que tudo o que Ele criou era originalmente bom e perfeito e que só Ele é a origem de todo o bem e de toda boa dádiva. Todas as virtudes que a educação busca desenvolver nos alunos, nos professores e na sociedade vêm, em última instância, de Deus. As aplicações dessa doutrina podem ser vistas também nas atitudes e concepções de uma escola cristã, que aceita e tem como algo bom tudo o que Deus ordena e institui. Por exemplo, se Deus, que é bom, instituiu o casamento e a família, o princípio da legitimidade das autoridades, é porque essas instituições são boas em si mesmas.
A eternidade, imanência, transcendência, onipotência, onisciência, imutabilidade de Deus são especialmente importantes para a relação de Deus com o homem, de Deus com a natureza, das concepções sobre a história humana, sobre o tempo, sobre as intervenções ordinárias e extraordinárias do poder de Deus no tempo e no espaço, sobre Seu conhecimento de todas as ações humanas e de tudo o que ocorre no mundo que criou. Também o poder infinito de Deus, derramado sobre os que nEle esperam, também constitui um estímulo à obra educacional coletiva e pessoal. Diante das dificuldades profissionais do professor ou das ansiedades dos alunos perante as dificuldades de aprendizagem, a confiança de que o Deus em que crêem pode fazer neles e por eles muito mais do que eles podem pedir ou imaginar é fonte de firmeza e bom ânimo.
O fato do Deus da fé protestante ser um Deus que conhece todas as coisas e que é infinitamente sábio em suas ações constitui tanto um fundamento como um instrumento para a educação. Fundamento na medida em que estudar as ciências, história, etc., é estudar a sabedoria divina revelada na sua criação e na providência. E um instrumento visto que, sendo Deus o Senhor de todo conhecimento verdadeiro e de toda sabedoria, só Ele pode conceder aos homens esses dons essenciais ao crescimento educacional.
Finalmente, a glória de Deus gerada pela união de todos os seus atributos, demanda dos homens sempre o louvor, a adoração e a obediência em todas as suas ações. Por ser quem é, Deus deve ser cultuado e servido. Ora, o louvor da glória de Deus e o serviço a seu reino não são os propósitos supremos da educação reformada?
Além dos atributos ontológicos, a Bíblia revela os atributos morais de Deus, relacionados ao seu caráter e também chamados de atributos comunicáveis, pois Deus os comunica, numa certa medida, às suas criaturas morais. O primeiro destes é o seu amor, manifestado primeiramente sobre o Filho, Jesus, sobre toda a sua criação, sobre o homem de maneira especial, como obra-prima e imagem de Deus, e de maneira salvífica, derramado sobre a Igreja, composta pela totalidade de seus eleitos. O amor de Deus se manifesta na bondade, na longanimidade, na misericórdia e na graça divina.
O segundo atributo moral de Deus é a sua verdade ou veracidade, que se manifesta na sua fidelidade. A Bíblia revela Deus como ontologicamente verdadeiro, logicamente verdadeiro e moralmente verdadeiro, pelo que se entende que Deus é verdadeiro, fiel e absolutamente confiável em sua essência e existência, no seu conhecimento e revelação, e no seu relacionamento e palavra:
1) Por metafisicamente verdadeiro, quer-se dizer que Ele é absolutamente verdadeiro na Sua essência ou ser. Isto é, Ele não é um deus falso ou fictício como os demais deuses. Não é obra de mãos humanas, feito de pau ou pedra, nem do pensamento ou imaginação humanas, mas o único ser que é verdadeiramente Deus. Nenhum outro ser tem os seus atributos na perfeição que Ele tem.
2) Por logicamente verdadeiro, quer-se dizer que Ele é absolutamente verdadeiro no Seu conhecimento, o qual é perfeito e imutável (em oposição ao erro e ao engano). O seu conhecimento não é parcial e falível como o conhecimento humano. A sua lógica é perfeita, nenhuma das suas premissas ou conclusões são falsas ou ilegítimas.
3) Por moralmente verdadeiro, quer-se dizer que Ele é absolutamente verdadeiro no seu relacionamento, nas suas palavras e promessas; ou seja, Ele é fiel; Ele não mente, não engana. Nele não há palavras dúbias, nem deixa de cumprí-las, como nós. Ele não é homem, para que minta; nem filho do homem, para que se arrependa. Porventura tendo ele prometido, não o fará? ou tendo falado não o cumprirá? (Nm 23:19). (ANGLADA, [199-], p.  63)
Uma importante aplicação educacional deste atributo de Deus é relativa à confiabilidade do conhecimento humano em geral. O eminente teólogo A. A. Hodge explica esse aspecto:
Isso [a fé na veracidade de Deus] põe o fundamento de toda confiança racional na constituição de nossa própria natureza e na ordem do mundo externo, tanto quanto numa revelação supernatural e divinamente creditada. Ela garante a validade da informação de nossos sentidos, a verdade das instituições da razão e da consciência, a precisão das inferências do entendimento e a credibilidade geral do testemunho humano e preeminentemente a confiabilidade de toda palavra das Escrituras Inspiradas. (HODGE, 1999, p. 84).
A verdade é um conceito fundamental da teologia reformada. O cristianismo se apresenta como a religião verdadeira. A Bíblia se apresenta como o livro de todas as verdades reveladas de Deus. A existência de verdades absolutas e imutáveis é defendida pelo cristianismo genuíno e constitui uma das bases da educação reformada. Esta não se propõe a ensinar aos alunos “verdades” relativas da época, ou idéias de homens mutáveis, e sim, a estudar, ensinar e preservar a verdade de Deus sobre a origem do homem e do universo, sobre o propósito de tudo o que existe, etc., e esta concepção marcante sobre a verdade provém da premissa de que Deus é verdadeiro.
A absoluta santidade, que é a somatória de todos os seus atributos morais, pode ser considerada um terceiro atributo moral de Deus, e a santidade de Deus é o motivo porque os Seus filhos devem também buscar a santidade e a santificação, não como meio de salvação, mas como um desejo sincero de agradar e de conformar-se à imagem dAquele que os salvou e que é marcado pela santidade absoluta. E o termo “santidade”, na Bíblia, aponta para algo que foi “separado” para um uso especial e colocado em uma relação peculiar para com Deus e para com o Seu serviço (BAVINK, 1997, p. 211).
A Santidade de Deus se manifesta nas suas obras, palavras e mandamentos. Na obra da criação, Deus colocou no homem o seu modelo de santidade, a lei moral gravada nos corações de todos os homens, também chamada de consciência, que acusa de certo e errado os procedimentos dos homens. A Bíblia, a revelação especial, fala da santidade de Deus, exorta os crentes a serem santos e separados e revela a Lei santa de Deus, resumida nos Dez Mandamentos (Êxodo 20:1-17). A santidade de Deus revela-se mais especialmente ainda na vida de Jesus e na sua morte expiatória na cruz do calvário, que manifestou aos homens a majestosa santidade de Deus, cuja perfeição moral exige a expiação da culpa, a punição do pecado. E finalmente, a Igreja, como povo santo de Deus, é chamada para revelar, honrar e imitar a Santidade do Redentor.
A santidade de Deus é uma das fontes da moral cristã, que é imutável. Por isso os reformados afirmam que não pode haver valores morais constantes à parte da religião, pois nada menos que a santidade de Deus pode determinar o que é absolutamente bom e santo para vida humana. Desta feita, uma educação que se proponha valorizar os princípios morais precisa partir do fato de que é a perfeição imutável do Ser divino quem os estabelece e que não se pode esperar que os homens, jovens e crianças, pratiquem uma moral sã à parte da dependência da graça e da bondade do único doador da santidade.
Um último atributo essencial ao caráter moral de Deus é a sua justiça, sem a qual o Deus que estivemos considerando não seria o Deus bíblico. O amor e a bondade de Deus precisam ser contrabalançados pela santidade e justiça divinas, ou este não seria o Deus professado nas Escrituras.
Deus se revela nas Escrituras como um Deus justo e Deus da justiça[6]. Na sua lida e obra para com os homens, Deus estabeleceu leis e mandamentos, os quais são todos justos, retos, perfeitos, visto que ‘‘A lei é santa; e o mandamento, santo e justo e bom.’’ (BÍBLIA SAGRADA, 1993, Rm. 7:12). Um outro sentido da justiça divina é que Deus é, Ele próprio, “um Governante justo, um Rei que reina com justiça, um Soberano que executa Suas próprias leis com justiça.” (ANGLADA, [199-], p. 75). E fala-se também da chamada justiça retributiva de Deus, como justo juiz que recompensa o bem e pune o mal praticado pelas suas criaturas morais, seja nesta vida seja no dia final do juízo de Cristo.
A grande importância de todas essas considerações feitas sobre a justiça de Deus, e Seus demais atributos para a educação, está no sentido de serem essenciais para formar aquela mentalidade ou visão de mundo bíblica, que irá definir e repercutir infinitamente sobre tantos aspectos da vida humana e das questões que permeiam a educação escolar. Em todas as disciplinas ensinadas, atitudes dos professores, a justiça deve ser a norma e o imperativo, além de ser esta uma virtude moral a ser cultivada nas crianças desde sua mais tenra idade. A justiça deve nortear todas as relações humanas, deve ser manifestada nas ações de quem deseja ser imitador de Cristo e deve ser buscada na Pessoa de Deus. O reconhecimento de que Deus é justo permeia mesmo a atitude de professores e alunos para com as calamidades que atingem a humanidade, como as guerras, fome e miséria, entendidas não como uma injustiça na administração divina, como muitos querem sugerir, mas como uma conseqüência do pecado no mundo, do egoísmo humano e muitas vezes até do justo juízo e ira de Deus sobre os homens. Decerto essa perspectiva diante das catástrofes e do mal no mundo fornece uma explicação a ser cuidadosamente estudada em cada evento histórico ou fenômeno cientifico que tende para o caos e não para a ordem natural da criação e providência divinas.
A Pedagogia reformada está completamente embasada e inseparavelmente fundamentada também na doutrina da Trindade e nas obras de cada pessoa divina, evidenciadas tanto no mundo em geral, como no conteúdo do ensino, na concepção de aprendizagem e na vida de cada aluno e professor. O entendimento reformado é que Deus Pai é o autor e planejador da criação, da providência e da redenção; o Filho é quem redimiu um povo para Deus e é o mediador entre Deus e os homens, livrando-os do pecado, da rebeldia da sua natureza, e revelando a Deus, além de ser apresentado como o mestre e o exemplo perfeito para os homens seguirem; e o Espírito Santo, é o iluminador dos corações e das mentes para que entendam a Bíblia e conheçam a Deus, sendo aquele que esclarece o entendimento e dá sabedoria aos homens, santifica as vidas segundo os mandamentos da Lei divina. Sem a obra divina, os homens sequer poderiam respirar ou mover-se, que dirá aprender ou conhecer?
As grandes obras de Deus citadas acima são a criação do mundo e do homem, a preservação de todo o cosmos e de toda a vida, e a redenção dos eleitos de Deus e de toda a criação não-moral juntamente com eles. Em conseqüência da crença nessas obras de Deus, a educação reformada fundamenta toda a sua ciência no criacionismo bíblico e nega o evolucionismo. A providência é a obra pela qual Deus preserva, governa e estabelece as leis regulares da natureza, como dependentes dele e sujeitas a suas intervenções sobrenaturais. E o entendimento da obra da redenção como prerrogativa divina e responsabilidade humana lança luz sobre o equilíbrio entre a vontade soberana de Deus e a vontade humana, tanto na salvação como em todos os negócios da vida.
Embora a soterologia[7] reformada atribua a Deus todo o mérito da salvação, não retira do homem sua responsabilidade. Aplicada a todas as demais áreas da vida, essa doutrina significa que as criaturas morais envolvidas continuam livres nas suas decisões, e por conseguinte, responsáveis por seus atos. É assim que a educação reformada lida com o problema da responsabilidade de cada agente do processo educacional, como o aluno e o professor, e aqueles elementos que estão fora do domínio natural, como os dons divinos, as facilidades e limites naturais, a operação divina que conduz à obediência e santidade, reconhecendo que as virtudes, os resultados do ensino, as atitudes, a diligência no estudo, o esforço pessoal, etc., são elementos que devem ser trabalhados dentro da perspectiva dupla da dependência de Deus e da responsabilidade pessoal.
Outro ponto educacional relacionado à doutrina reformada da redenção é o que está ligado à obra de Cristo, indicado nos textos bíblicos de I Coríntios 1:30, 31: “Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou da parte de Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção”, e em Colossenses 2: 2,3:  “Para que eles (a igreja) tenham toda a riqueza da forte convicção do entendimento, para compreenderem plenamente o mistério de Deus, Cristo, em quem todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos.”
O versículo acima afirma claramente que a fonte de todo conhecimento e de toda sabedoria é a pessoa do Filho de Deus, sabedoria esta que Ele somente pode conceder aos homens, e de modo especial aos crentes. Por isso, o versículo de I Coríntios 1 termina afirmando: “Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor”, ou seja, se algo é obtido através do estudo pessoal e se alcança-se algum nível de sabedoria, a glória deve ser dada a Cristo, que é quem dá aos homens a própria vida, a respiração, a saúde, o ânimo, as oportunidades para a educação e a sabedoria propriamente dita. “Tudo vem de Deus” e “dEle, por Ele e para Ele” são todas as coisas.
Esse é um ponto fundamental. O propósito da pedagogia reformada não consiste somente em fornecer conteúdos, informações, fazer dos alunos bons cidadãos, mas consiste em fornecer um subsídio para que os alunos possam vir a aplicar devidamente esse conhecimento e experiências adquiridas na instrução. Isso é precisamente o que a Bíblia chama de sabedoria.
A Bíblia revela ainda algo que revoluciona toda a maneira de o professor e aluno cristãos olharem para o mundo e para a sociedade: o propósito da obra da redenção realizada por Cristo se aplica não somente ao homem, mas inclui todo o cosmos (a terra, os seres vivos, o universo material e imaterial). A mensagem bíblica é que a queda do homem trouxe conseqüências para toda a criação, que a seu tempo “geme e suporta angústias até agora, por causa do pecado” (A BÍBLIA..., Romanos 8:22). É por isso que a terra não produz só alimentos, mas espinhos e abrolhos (ABÍBLIA..., Gênesis 3:18), e que é constantemente acometida por catástrofes, desordens, etc. Mas a obra redentora de Cristo promete redimir a própria criação destes males, e a Bíblia fala de novos céus e nova terra (A BÍBLIA..., II Pedro 3:13). Esse entendimento determina toda a concepção que a pessoa tem sobre a natureza, seus fenômenos biológicos, físicos, os problemas ambientais e a orienta quanto ao que se deve esperar para esse mundo no estado em que se encontra.

6.3 O Homem em seus Estados: Considerações da Antropologia Reformada


Se há um pensamento que tem sido alvo de incansáveis buscas por parte de todos os homens em todas as eras, e que com certeza influencia todas as ações e concepções humanas é a idéia que o homem tem de si próprio. Este problema está na base da filosofia, e é especialmente relevante para todas as ciências humanas: quem é o homem, de onde ele veio, para onde ele vai? Em outras palavras: qual é a essência da natureza humana? Por que o homem existe? Qual o propósito de sua existência?
Lloyd Jones chega a sugerir no seu livro “Uma nação sob a ira de Deus” que todos os problemas que os homens discutem atualmente provém do seu desconhecimento sobre si mesmos: 
Qual é o problema do mundo? Por que as coisas estão como estão? A Bíblia, do começo ao fim, sempre dá essa resposta; primeiro, os homens e as mulheres estão definitivamente com problemas porque não conhecem a verdade sobre si mesmos, nem crêem nela. Isso soa aos ouvidos modernos, é claro, como algo ridículo, porque nossa maior jactância é a de que temos maior conhecimento que qualquer criatura que haja existido antes de nós.(...) Mas o fato é que o problema principal de homens e mulheres ainda é que eles são tremendamente ignorantes quanto a si mesmos. (2000, p 13).
Por isso, a fé reformada, embora dê a primazia a Deus tanto em sua doutrina como na sua prática eclesiástica e litúrgica, não despreza a importância de uma visão apropriada e bem definida sobre o homem, buscando manter o equilíbrio no valor dado à pessoa humana, e o faz considerando-a à luz da grandeza da pessoa de Deus, evitando o antropocentrismo.
O ensino reformado sobre o homem encontrado na Confissão de fé de Westminster busca responder essa questão sobre “Quem é o homem?” primeiro indicando a sua natureza essencial, a partir de sua origem e criação. E então divide a condição humana em alguns estados, pois para saber quem é o homem há que se considerar em qual dos estados seguintes ele se encontra: estado de inocência, estado de pecado, estado de graça e estado futuro de glória eterna ou condenação eterna.

6.3.1 Quem é o Homem no Estado Original?


A Bíblia afirma em Gênesis que o homem é um ser criado por Deus, a partir do pó da terra, e a mulher a partir da costela de Adão. A criação do homem foi um ato especial de Deus, distinto da criação dos animais, das aves, das plantas, etc. O homem foi criado de um modo especial por Deus tanto por ter sido fruto de um conselho especial da Trindade, que se reuniu e decidiu: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” (A BÍBLIA..., Gênesis 1:26); quanto por ter sido moldado do pó da terra pela mão de Deus, que soprou em suas narinas o fôlego da vida, passando o homem a ser alma vivente (A BÍBLIA..., Gênesis 2:7). O termo alma vivente aponta para outra peculiaridade do ser humano, a distinção existente entre o corpo e o espírito, “entre as partes material e imaterial” (LLOYD-JONES, 1997, p. 202) do homem. Finalmente constata-se a posição elevada em que o homem foi colocado por Deus na Terra, como Senhor sobre toda a criação.
As implicações dessa doutrina que esclarece para os reformados a origem do homem e algo sobre sua natureza essencial são de grande impacto para o mundo moderno, visto que as concepções sobre a natureza humana são distintamente opostas à visão que se tem do homem como um mero “animal racional”, evoluído de um ser unicelular, para citar a teoria da evolução, e isso influencia diretamente a educação.
A doutrina da Imago Dei (ou imagem de Deus) é outra doutrina chave para a educação reformada. Em seu livro sobre o assunto, Anthony Hoekema afirma que “o conceito da imagem de Deus é o coração da antropologia cristã” (2000, p. 66). Ela significa que o homem foi criado para refletir e revelar a imagem de Deus na Terra e para ser aqui um tipo de representante de Deus. A imagem de Deus significa, portanto, que o homem, em todo o seu ser, características e relações (relação entre o homem e Deus, relação entre os homens entre si e relação entre o homem e a natureza) deveria refletir e representar Deus.
A imagem de Deus no homem apresenta pelo menos três aspectos: a imago Dei ontológica, funcional e moral. A imago Dei ontológica significa que o próprio ser e constituição humana em sua estrutura espiritual, mental e física refletem a Pessoa de Deus. Deus é Espírito, e Ele criou os homens seres espirituais, capazes de se relacionarem com o Criador e com o propósito de desfrutarem da comunhão com Deus, como Adão tinha no paraíso.  De sua espiritualidade decorre a sua imortalidade (da alma). Porque Deus é um ser pessoal, com vontade, pensamento e sentimentos próprios, o homem foi criado com intelecto, vontade, moral e liberdade. Sendo um Ser racional e autor do conhecimento e da sabedoria, Deus criou o homem um ser racional, capaz de pensar, de conhecer o mundo, a si mesmo e ao Criador.
O homem foi criado, no que se refere à sua vontade, como criatura e pessoa ao mesmo tempo, totalmente dependente de Deus para dele obter a vida, o ar que respira, e o sustento diário, mas livre para fazer escolhas como uma verdadeira pessoa. Robert D. Brinsmead, (1978) apud Hoekema, (2000, p. 7)  colocou a questão dessa forma:
Os aspectos do homem tanto como uma criatura como uma pessoa devem ser ambos mantidos juntos e em tensão. Quando a teologia ressalta o aspecto de criatura e subordina a personalidade, cai-se num forte determinismo e o homem é desumanizado. ...Quando a personalidade é enfatizada em detrimento do aspecto de criatura, o homem é endeusado e a soberania de Deus é comprometida. O Senhor é deixado à mercê dos homens, como se estes tivessem o poder de vetar os planos e propósitos de Deus.
A manutenção dessa tensão entre a liberdade humana em suas escolhas e a vontade soberana de Deus é uma marca da antropologia reformada, e é determinante para que se tenha um entendimento correto das demais doutrinas, como a doutrina do pecado, da redenção humana e da santificação. Por ser uma pessoa, o homem pode fazer escolhas, ainda que estas sejam contrárias à vontade de Deus. Hoekema comenta este ponto instigador, acrescentando que “mesmo ao pecar, o ser humano permanece uma criatura, dependente de Deus. Deus, por assim dizer, teve de equipar o homem com a força com a qual ele pecou; a magnitude do pecado humano consiste no fato de que ele usou os poderes dados por Deus a serviço de Satanás.” (2000, p. 7).
O homem também foi criado com a Imago Dei moral, que se refere à perfeição e integridade da natureza humana no que diz respeito ao conhecimento, à justiça e à genuína santidade. Como Deus é moralmente santo, ele criou o homem moralmente santo, em todos esses aspectos. A fé reformada tradicional afirma que o homem foi criado intelectualmente santo, volitivamente santo e emocionalmente santo, mas a imagem de Deus moral foi completamente perdida com a queda do homem no pecado, que destruiu sua retidão e santidade originais.
E há ainda o que a teologia reformada tem chamado de Imago Dei funcional, ou seja, assim como Deus é o Senhor absoluto de tudo o que existe; ele conferiu ao homem a dignidade e a autoridade como a cabeça deste departamento da criação (HODGE, 1999, p. 126). Esse aspecto da imagem de Deus é encontrado no primeiro capítulo do livro de Gênesis, versos 26-27:
(...) disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre os animais dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam sobre a terra. Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou (...).
Pode-se então concluir que no estado original o homem foi um perfeito governante da natureza e soube sujeita-la de acordo com as suas necessidades, fazendo-o de forma perfeita, sem destruí-la ou abusar dela.
Logo após ter criado o homem e a mulher, a narrativa bíblica prossegue revelando que a Trindade fez um pacto com Adão, ali colocado como representante legítimo de toda a raça humana, conhecido como “o pacto das obras”. Deus deu ao homem uma ordem que deveria ser cabalmente obedecida, pois a proibição de que se comesse do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal representava a vontade de Deus para o homem e a atitude do homem para com Deus. Caso o homem desobedecesse a ordem de Deus, seguiria-se uma penalidade, encontrada em Gênesis 2:17: “no dia em que dela comeres, certamente morrerás”[8]. Feito este acordo, o homem naquele estado de inocência estava em uma fase de ensaio ou de prova, como colocou Lloyd Jones (1997, p.230), e tinha duas opções: poderia obedecer a lei de Deus no pacto e experimentaria a eternidade gozando de uma vida perfeita, num mundo perfeito onde fora colocado, ou se rebelaria contra o mandamento divino e contra a pessoa do Criador, e então experimentaria a queda, o pecado, a morte. Conforme o ensino reformado, o estado de inocência foi o único estado em que o homem possuiu verdadeiro livre-arbítrio e onde esteve nas suas mãos escolher o bem ou o mal.
O homem no estado original revela o verdadeiro plano de Deus para o ser humano, posto que Adão é tido, na fé reformada, como legítimo representante de toda a raça humana. Em Adão e em Eva, é possível ver a perfeição de um ser criado para refletir os atributos, o ser e as funções do próprio Criador, em suma, para refletir a imagem de Deus. Era um ser moralmente bom, inclinado para o bem, com corpo, intelecto e alma perfeitos e perfeitamente capazes de se desenvolver até o mais alto grau de perfeição no relacionamento com Deus, com os homens e com a natureza.
Este homem foi colocado em um ambiente também perfeito e vivia para o fim maior para o qual fora criado e com o qual poderia encontrar plena satisfação, a saber, a comunhão com Deus e o usufruto da natureza. Entretanto esta criatura perfeita era ao mesmo tempo uma pessoa, e portanto, livre em sua vontade própria, e possuidora de verdadeiro livre-arbítrio para escolher entre obedecer a Deus ou desobedece-lO, entre o bem ou o mal, inclusive com predisposição para o bem.
A relevância que a antropologia reformada atribui ao estudo desse primeiro estado do homem é o fato de que ele revela o que o homem deveria ter sido. Se desejamos saber como o homem deveria ser – dizem os reformados – devemos procurar compreender como era o homem tal qual foi criado no Éden.
Um estudioso de psicologia disse uma vez numa palestra que o problema da psicologia moderna é que o homem não vinha com um manual, tampouco alguém conheceu um ser humano em perfeito estado. Se encontrássemos um rádio todo desmontado – explicou ele – só teríamos alguma esperança de monta-lo novamente se soubermos o que é um rádio, como ele funciona e como era o rádio original, mas para alguém que nunca sequer viu um rádio, ajustar aquelas peças para que cumpram seu objetivo de sintonizar estações e tocar músicas, seria uma tarefa impossível, e ele sequer saberia o que fazer com aquele monte de pedaços.
A partir desse exemplo, sugere-se – juntamente com educadores reformados – que este é precisamente o problema da pedagogia. Ela não sabe quem é o homem, quem é a criança, por que ela existe. Não se considera que ela possui uma alma eterna e qual o propósito desta alma. Por conseguinte, não sabe o que fazer com ela, por isso a pergunta nunca cessa: O que se quer formar? O que se busca para o homem? Qual a sociedade ideal? São perguntas filosóficas que ressoam nos cursos de pedagogia sem resposta. De modo geral, o que se quer é um homem tornado o mais próximo possível da perfeição através da educação, que poderá formar uma sociedade perfeita. Mas não se sabe o que é isso. Não se conhece o padrão, o que o homem deveria ser, por um lado. Por outro, ignora-se que o homem não mais se encontra no paraíso, e que esta condição de perfeição foi perdida e não pode mais ser alcançada, como veremos no item seguinte. 
Finalmente, este estado revela, de modo positivo para a educação reformada, muito do que era para ser o homem, como ele deve ser visto e o que se deve buscar para ele.

6.3.2 Quem é o Homem no Estado de Pecado?


A teologia reformada professa que, de acordo com o ensino bíblico, o homem, criado perfeito, porém livre, em sua liberdade escolheu desobedecer a Deus e pecou, comendo do fruto que Deus lhe havia proibido, episódio conhecido como “a queda” do homem, que destruiu aquele estado de perfeição original e o introduziu num outro estado, estado em que todo homem nasce depois de Adão até os dias de hoje, a saber, o estado de pecado. Esse assunto merece especial atenção pelo fato lançar luz ao entendimento de quem é o homem como o conhecemos, como se tornou assim, por que o mundo se encontra como se encontra atualmente, e até que ponto é possível buscar soluções apropriadas e ter esperança para o ser humano neste estado.
Tentados por Satanás, personificado na serpente falante do relato de Gênesis 3, Adão e Eva duvidaram, por incredulidade, da Palavra de Deus e de suas intenções e veracidade. Eles cederam e sucumbiram à tentação de Satanás, comendo daquele fruto tão agradável aos olhos.
O que estava acontecendo ali, naquele momento lança luz sobre a natureza do pecado. Afinal, o que é o pecado? O que Adão e Eva fizeram de errado ali no Éden? Há de se convir que comer um fruto agradável aos olhos não constitui um ato pecaminoso em si mesmo, ao contrário, chega a ser um desejo natural e instintivo, em última instância, dado aos homens pelo próprio Deus para seu prazer e deleite na natureza. Entretanto, este ato se tornou pecaminoso porque foi um ato de desobediência à vontade explícita de Deus.
A definição reformada de pecado não é da filosofia dualista que vê o mal e o bem como duas forças iguais e opostas. Nem a evolucionista de que o homem é imperfeito porque ainda não está plenamente desenvolvido e o mal está ligado aos resquícios animalescos no homem. Nem tampouco é a apenas a ausência de algumas qualidades positivas, não sendo essencialmente mau. Na Bíblia, pecado significa “qualquer falta de conformidade com a lei de Deus, ou qualquer transgressão dessa lei” (CONFISSÃO..., 1991, p. 40). O pecado de Adão consistiu na desobediência à lei divina e essa é a natureza do pecado desde então.
A fé reformada sustenta, ainda, que a culpa do pecado de Adão foi imputada ou lançada legalmente na conta de toda a raça humana. E não somente a culpa como a corrupção do pecado atingiu a todos os homens, de modo que todo ser humano depois de Adão já nasce pecador, corrompido em sua natureza essencial. E também todos os homens são igualmente merecedores do salário do pecado, que é a morte, sendo por isso, indesculpáveis perante Deus e merecedores da condenação e do inferno.
As conseqüências do pecado foram das mais trágicas. A primeira delas foi a morte, entendida na Bíblia como separação. Adão imediatamente morreu espiritualmente, ou seja, foi separado da comunhão com Deus. A sua existência na terra também passaria a ter um fim na morte física, a separação da alma do corpo, e a morte eterna significaria a separação eterna da alma humana de Deus, de toda bondade e graça que provém dEle, ou seja, o inferno. A degeneração da Criação foi outra conseqüência legal do pecado de Adão, posto que a queda do homem afetou profundamente o restante da criação e teve efeitos cósmicos[9]. Seguiram-se ainda três castigos específicos. Um para a mulher, outro para o homem, outro para a serpente. A punição específica para a mulher foi o agravamento dos sofrimentos da gravidez e do parto. Para o homem, a penalidade seria a labuta para a sua subsistência.
Além dessas punições ou conseqüências judiciais ou legais, a queda acarretou conseqüências naturais para a condição humana. Trouxe, em primeiro lugar, a corrupção da Imagem de Deus no Homem. A imagem ontológica não foi destruída, mas foi distorcida. O homem continuava um ser espiritual, pessoal, imortal, racional, mantendo suas características divinas, entretanto o homem passou a usar esses dons divinos de maneira contrária à vontade de Deus. A imagem moral foi completamente perdida. Todos os homens perderam a santidade e a pureza moral com que foram criados e agora a inclinação de seu coração e desejos são inevitavelmente inclinados para o mal. E a imagem funcional também foi pervertida, ou seja, em sua relação com a natureza, o homem deixou de ser um bom senhor da criação, mas abusa dela.
Outra conseqüência foi a depravação total da natureza humana e a inabilidade espiritual para o homem fazer qualquer coisa para ser salvo. A depravação total não significa que ele é tão depravado e mau como poderia ser. Tampouco significa que o homem caído não tem nenhum conhecimento de Deus, nem ainda que ele é incapaz de reconhecer ou de admirar virtudes ou de sentimentos e ações exteriormente bons. A depravação total é a perversão de todas as faculdades do ser humano, visto que o homem deixa de ser controlado pela vontade de Deus, obedece a si mesmo, e faz um mau uso de todas as suas faculdades, de maneira que todas as áreas da vida humana são afetadas, em maior ou menor grau, pelo pecado.
A depravação se manifesta, por exemplo, na intelectualidade humana, (erro, mentira, engano, heresia, incredulidade, idolatria, etc), na vontade humana, (desejo do mal, desobediência, insubmissão, determinação para pecar), nas próprias emoções e sentimentos do homem (prazer e  disposição para com todo tipo de pecado, e ódio, desprazer e amargura para com Deus e para com seus deveres de amá-lO, adora-lO e servi-lO)
A alienação de Deus foi outra conseqüência da queda, pois o pecado destruiu a comunhão que o homem tinha com um Deus que é santo. E acrescenta-se ainda a corrupção física do próprio corpo humano, que passou a ser sujeito a fraquezas, a limitações, a doenças e a morte física. É por isso que existem tantas síndromes e deficiências e é por isso que as escolas têm de lidar com temas como: a prevenção de doenças, abordagem educacional das crianças com déficit cognitivo, necessidades educacionais especiais, cansaço, preguiça, etc. As potencialidades do cérebro humano foram afetadas. Os atletas e os gênios nos dão uma idéia das gigantescas potencialidades do ser humano se este não se tivesse corrompido.
O homem como o conhecemos hoje, portanto, é um ser caído de seu estado de perfeição e santidade original, corrompido pelo pecado e sofrendo suas consequências, amargurado por sentimentos de culpa e pelas acusações de sua consciência. Espiritualmente, está morto e, nesta condição não lhe é possível fazer coisa alguma em benefício próprio, nem alcançar salvação por qualquer “boa obra” que tenha algum valor para Deus. Nessa condição, ao invés de pelo menos tentar obedecer a lei de Deus em busca de salvação, os homens a retiram de suas vidas, e chegam a ter tamanha aversão a ela, que a contrariam inteiramente. Um fato emblemático que demonstrou isso foi uma notícia recentemente divulgada a respeito de uma controvérsia ocorrida nos Estados Unidos sobre um monumento aos Dez Mandamentos existente numa de suas cortes judiciais. A oposição dos grupos liberais fez com que os Dez Mandamentos fossem literalmente removidos daquela corte. A Lei de Deus não é mais a norma de justiça para os homens.
Na concepção reformada, o estado atual do homem é muito grave. Ele é um ser que odeia Deus, abomina a sua presença, seus atributos e a sua mensagem, pois a santidade de Deus revela as trevas do seu coração. É uma criatura que se rebelou e está em inimizade para com Seu criador, e essa condição faz com que o homem vá sempre de mal a pior. Sem conhecer a verdade sobre si, sobre Deus, sobre a razão de sua existência, o homem vive para buscar o prazer, geralmente numa perspectiva materialista de vida. Moralmente, a corrupção moral degenera-se em perversão moral, quando os valores são não apenas rejeitados, mas invertidos. E essa condição atinge todas as classes de pessoas, do mais jovem, ao mais velho, do mais inculto ao maior erudito, do mais pobre às mais elevadas camadas sociais. Como comenta Lloyd-Jones (2000), o que muda é só a manifestação do pecado, mas a corrupção e essência do pecado encontra-se em todos igualmente.
Ainda como resultado do pecado, o homem enfrenta os castigos da queda: ele não mais habita num paraíso, mas vive uma vida cheia de obstáculos, dúvidas, suor; a vida não lhe é fácil, duro é o trabalho para ganhar o pão de sua sobrevivência. Por isso é que estudar e trabalhar são atividades difíceis. Semelhantemente, o estado do homem afeta toda a criação. Catástrofes naturais, poluição da natureza, guerras, animais em extinção, destruição das florestas, etc., são evidências de como a natureza geme e suporta angústias por causa do pecado.
A antropologia reformada dá uma explicação bastante coerente e abrangente para todo o problema do mal no mundo, em termos de sua causa e natureza e enfatiza o fato de que isto é um estado de deformação, não é como deveria ser. Olhar para o mundo hoje e para o homem como este se encontra não é olhar para uma bela construção em desenvolvimento, como muitos querem sugerir com a teoria evolucionista, mas é observar as ruínas de um castelo, onde se acha a seguinte inscrição: “Certa vez, Deus residiu aqui” (LLOYD-JONES, 1997, p. 244). Tudo o que conhecemos do homem, das ciências, da história, etc., constitui a história do mundo sem Deus, ou, como colocou o mesmo autor em outro lugar [199-], o paraíso perdido, a que os homens querem retornar a todo custo. Essa incansável busca pelo paraíso pode ser vista nas grandes empreitadas do conhecimento e da mente do homem que rejeitou a Deus como pressuposto, no fazer ciência sem considerar a presença de Deus, no querer educar as crianças sem um fim e propósito em Deus.
As implicações educacionais dessa doutrina do estado pecaminoso do homem são variadas. Um ponto central que em que a antropologia reformada diverge da pedagogia atual rousseauriana é o de considerar a criança como um ser corrompido, inerentemente e completamente mau. De acordo com a concepção reformada de educação, qualquer pedagogia que não se embasa nesse fundamento doutrinário está fadada a ser um fracasso.
A antropologia reformada também rejeita qualquer idéia de perfeccionismo nesse mundo, de pedagogias seculares redentoras, e de real mudança social ou educacional à parte de Deus, e afirma que o homem em pecado não pode retornar ao paraíso, porque as pessoas querem um paraíso sem Deus e tal coisa não existe.

6.3.3 O Estado de Graça: Uma Esperança para a Humanidade


Se todo homem ou mulher, desde Adão e Eva, vêm a este mundo em estado de pecado, e dele não podem sair por si próprios por estarem mortos em seus delitos e pecados, se este fosse o fim da história, não haveria mais nenhuma esperança para a raça humana, como não houve para os anjos que caíram. Mas a mensagem do Evangelho é de “Boas novas”. Após constatar a realidade do estado humano em depravação e miséria espiritual, a Bíblia afirma que há esperança.
Entretanto, não há diversas saídas, tampouco esta saída depende dos esforços ou da inteligência humana. A única saída do estado de pecado é encontrada num segundo pacto, que a fé reformada denomina de Pacto da Redenção ou Pacto da Graça.
Por meio deste pacto da redenção, Deus mais uma vez entra em aliança com o homem, desta vez caído e culpado, e lhe proporciona, pela Sua Graça somente, salvação gratuita aos eleitos que o Pai escolheu desde antes da fundação do mundo, a qual foi obtida pela obediência perfeita de Cristo às demandas do pacto da Redenção. Este pacto, em um sentido mais profundo, foi realizado entre as três pessoas da Trindade, mais especialmente entre o Pai e o Filho, que deliberaram salvar alguns homens para manifestar neles a bondade e a misericórdia divina para com a raça humana caída.
O acordo do pacto era que Deus Pai daria ao Filho um povo, proveniente de todas as nações e línguas. E lhe daria uma natureza e um corpo humano e lhe capacitaria para que viesse ao mundo e salvasse os eleitos. Deus destruiria os seus inimigos e lhe daria toda a autoridade nos céus e na terra, exaltando-o acima de todo nome e recompensando-o com a mesma glória que tinha antes da encarnação. O Filho, Jesus, por sua vez, deveria encarnar e tornar-se mediador e sacerdote representativo de toda a raça humana, e nessa condição de segundo Adão, deveria cumprir integralmente a Lei de Deus e expiar a culpa do pecado dos homens através da única maneira possível, pelo derramamento de sangue, ou seja, pela sua morte. Dos eleitos se requereria arrependimento e fé, que se constituem tanto condições como meios de salvação, não da eleição, é importante frisar.
O Pacto da graça faz parte de um plano muito mais abrangente que é chamado de o grande plano da redenção, arquitetado desde antes da fundação do mundo pela Trindade e cujo propósito não se aplica somente ao Homem, mas estende-se a todas as coisas criadas. Por meio desse pacto Deus proveu um meio para redimir um grupo dentre a humanidade condenada.
A redenção dos eleitos, obtida através do pacto da graça é a única saída que pode retirar os homens do estado de pecado e introduzi-lo em um novo estado, o estado de graça. Todo homem que é um eleito de Deus é beneficiário da obra justificadora e redentora de Cristo na cruz do calvário e, mediante o arrependimento de seus pecados e a fé na Pessoa e na obra de Cristo e nas doutrinas do Evangelho, encontra-se neste novo estado.
No estado de graça, a vontade humana encontra-se numa condição especial, e ocorre uma profunda transformação interna na condição humana, comparada a um novo nascimento. O homem se arrepende do seu pecado, lança-se aos pés de Cristo e obtém perdão. O seu entendimento é iluminado e ele passa a conhecer e a entender a verdade: “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (A BÍBLIA..., João 8:32), e o Espírito Santo age convertendo o seu coração, de maneira de que o crente passa a ter vontade de fazer a vontade de Deus. A natureza pecaminosa continua a existir, mas a operação do Espírito no seu coração o habilita a desejar fazer e a fazer de fato o que é agradável a Deus. Esse estado se distingue do anterior pelo fato de que aqui o homem pode, pela graça de Deus, não pecar, resistir ao diabo, às tentações do mundo e à sua inclinação natural, e obedecer a vontade revelada de Deus, mas não sem muita luta e conflito permanente.
Semelhantemente, a imagem de Deus no homem, no estado de graça, experimenta uma renovação ou restauração progressiva, embora não completa. O homem é capacitado pelo Espírito Santo a usar os dons e poderes dados por Deus de maneira correta, para o propósito determinado por Deus. A razão, a vontade, o conhecimento, a pessoalidade, as emoções, etc. passam a ser instrumentos para a obediência à vontade divina.
De maneira mais prática, essa renovação da imagem de Deus no homem pela santificação significa a transformação de todas as áreas da vida humana, e a restauração de todas as relações em que o homem é colocado, com Deus, com o seu próximo e com a criação. A santificação exige um novo modo de pensar, falar e viver. Envolve mortificar a natureza pecaminosa e cultivar das virtudes cristãs, envolve a renovação da mente (A BÍBLIA..., Romanos 12:1-2), o produzir os frutos do Espírito Santo, relacionados na epístola aos Gálatas, o andar na verdade, ou seja, andar de acordo com as revelações e ensino bíblico, e viver para Cristo. Em uma palavra, demanda a imitação de Cristo, exemplo perfeito a ser seguido.
Neste estado, o homem continua sendo um pecador com uma natureza corrompida e inclinada para o mal, porém é um pecador arrependido e que possui em seu coração a semente de uma nova vida espiritual que reestabelece a relação pacífica entre este e Deus. O homem neste estado é alguém humilde e grato pela obra de Deus em Cristo por ele. É alguém que teve sua vontade restaurada e é capacitado para fazer o bem e para agradar a Deus. É alguém que sabe que não é salvo pelas suas obras de justiça e atribui a causa e mérito de sua salvação exclusivamente à graça soberana de Deus. Mas, por gratidão e dever de consciência, busca sinceramente realizar boas obras, obedecer aos mandamentos divinos e viver para agradar ao Senhor e promover o seu reino e suas verdades no mundo.
É alguém que se encontra em uma luta ferrenha e constante, que já foi descrita pelos teólogos como “a maior luta do mundo”, ou “o combate cristão”, e trava uma batalha no âmbito da alma entre a natureza inclinada para o pecado, as sugestões de Satanás e a atração do mundo, de um lado, e a nova natureza de Cristo de outro, que precisa ser constantemente alimentada pelos meios de graça (a Bíblia, a pregação, os sacramentos, a oração) a fim de crescer até o pleno conhecimento de Cristo.
O crente é uma pessoa que vive para Deus e para sua glória, embora muitas vezes caia em pecado, entristeça-se com isso, e volte-se novamente para Deus em busca de arrependimento. A base de sua vida, entretanto, é a comunhão com Deus e a paz, o amor, a alegria e a esperança que dela decorrem.
Finalmente, é alguém que vive esta vida e faz tudo o que faz à luz da eternidade, pela fé, tendo em vista aquilo que é invisível. Mas isso não o leva a uma atitude de espiritualismo, subjetivismo ou reclusão. Ao contrário, a esperança das promessas e da glória eterna dão sentido à sua vida e atividades nos anos em que passa nesta terra, pois vivem de acordo com o propósito para o qual foram criados. O trabalho, os estudos, a família, o lazer, tudo adquire um sentido próprio e um lugar apropriado abaixo do propósito último da vida do crente, que é viver de modo digno da vocação a que foi chamado, viver para a glória de Deus.

6.3.4 E quanto ao futuro?


Cabe apenas completar que a religião cristã é voltada para o futuro. A história do homem não se limita à sua existência nesse mundo, mas encaminha-se para eventos finais que inaugurarão um novo estado, o estado eterno.
A Bíblia afirma que logo após a morte dos homens, seus corpos corrompem-se até ao pó, mas suas almas não são aniquiladas, nem retornam à terra em outros corpos, mas adentram num estado temporário que teologia chama de estado intermediário. Este estado pode ser de bem-aventurança ou de condenação, e já podemos chamar estas condições de céu e inferno; céu, porque o crente já desfruta da comunhão com Cristo e com a Igreja triunfante, e inferno porque o ímpio já se encontra nos tormentos do inferno e da separação total de Deus e de todo bem. Neste estado, as almas dos homens aguardam a consumação do plano eterno de Deus para com as suas criaturas, que só ocorrerá na instauração do estado eterno.
O estado eterno seguirá a segunda vinda de Cristo ao mundo, a ressurreição dos corpos, o grande julgamento final e a proclamação da vitória do Cordeiro e da condenação eterna dos anjos e homens caídos. Para os crentes, a Bíblia fala de novos céus e nova terra, onde habita justiça, e onde Cristo será Rei. Os crentes habitarão em felicidade eterna, com o seu corpo agora glorificado e incorruptível, numa nova criação completamente livre dos efeitos do pecado, e onde pecado nem morte jamais poderão adentrar.
Ali, os salvos viverão, finalmente, para o propósito para o qual foram criados: a glorificação da pessoa de Deus e o eterno desfrutar de sua presença. Nesse estado, a santificação do homem será total, a imagem de Deus será completamente restaurada, como no princípio, em sua relação com Deus, com o próximo e com a natureza, e a Bíblia ensina que a própria natureza será redimida dos efeitos da queda, através da restauração final do paraíso que fora perdido.
Para os homens descrentes, que rejeitaram a mensagem do evangelho, a Bíblia prevê um estado de condenação e perdição eterna, o perecer eternamente no inferno, ou seja, numa condição de total e eterna separação de Deus e de todo tipo de graça ou de bondade, como da luz do sol, do calor das relações familiares, dos benefícios gerais da educação. Nesta condição, tudo o que o homem pode fazer é pecar e colher eternamente os frutos do pecado.
A importância de considerarmos brevemente esses estados futuros está no fato de que, de acordo com a fé reformada, o homem vive neste mundo à luz da eternidade. Essa é uma das questões fundamentais que todo homem busca responder: “para onde eu vou?” A visão que ele tem do que o aguarda é determinante do seu modo de vida aqui. E por outro lado, o tempo que homens e mulheres passam nesta terra é definidor da sua condição futura.

 

6.3.5 O Aluno na Visão da Antropologia Reformada


A antropologia reformada e a definição dos estados em que os homens se encontram exerce um papel essencial dentro da educação reformada, dentre outras coisas, porque oferecem indicações para que os educadores reformados elaborem uma concepção de aluno consistente com a cosmovisão bíblica.
James Beeke, em palestra proferida sobre o tema: “De que modo devo ensinar aos meus alunos?” (2003) inicia falando sobre como os pais e educadores reformados devem ver ou considerar as crianças com as quais estão lidando. Ele aplica o esquema bíblico da criação-queda-redenção e concebe as crianças a partir de três postulados: como especialmente criadas e concebidas por Deus, como pecadores caídos, no que se refere à obra humana, como pecadores regeneráveis, através da obra de Cristo.
Segundo ele, uma escola reformada vê e trata as crianças através dessa perspectiva. Quando trabalha com as crianças, sabe que está diante de uma criatura única e especial de Deus, de modo que cada criança é diferente da outra, e possui habilidades diversas para refletirem a imagem do Deus sábio e poderoso que as criou. Assim, elas merecem todo o respeito e apreciação, como pessoas, e suas habilidades precisam ser aproveitadas e utilizadas. Se Deus as criou com uma mente capaz de grandes coisas, essa mente deve ser grandemente desenvolvida pela educação. Se elas foram criadas com uma alma imortal capaz de se relacionar com o criador, como a mais importante instância do ser humano, a alma precisa ser levada em conta em todo processo educacional. A Bíblia não confere valor a uma educação que trata do intelecto, das emoções, da criatividade do ser humano, mas não provê o alimento e a correção que a alma necessita. O próprio Jesus adverte em Mateus 16:26: “pois que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” Assim, a educação cristã leva em consideração e tem a alma da criança e o seu destino eterno como o aspecto mais precioso e mais digno de atenção educacional
Beeke (2003) lembra ainda a necessidade de reconhecer na educação o equilíbrio proveniente da consideração do duplo aspecto da constituição do homem, glorioso por ter sido formado pela mão de Deus e feito alma vivente pelo Seu sopro, e ao mesmo tempo humilde,  por ter sido formado do pó da terra, o elemento mais insignificante da criação, e a mulher de uma costela de Adão. Isso significa que a importância e o caráter especial do homem vêm de Deus, e assim seus dons e capacidades por Ele conferidas devem ser valorizados e apreciados na educação reformada. Mas significa também que é preciso reconhecer que o homem, por si mesmo, não passa de pó e que deve aprender a atribuir toda a glória de suas realizações a Deus.
Assim, as crianças devem aprender a usar e a valorizar as suas capacidades de resolver um problema matemático, mas juntamente com essa realização, elas devem aprender a atribuir a honra e a glória deste feito ao Deus que lhe deu a inteligência; a escola cristã precisa ensinar a criança que a humildade e o prestar louvores e graças a Deus por suas realizações educacionais são mais importantes do que as próprias realizações educacionais em si, e que os dons que recebeu devem ser usados de maneira correta, ou seja, para o serviço de Deus através do serviço ao próximo, e para fins que a Bíblia considera bons.
A educação reformada precisa também levar em conta a condição caída da natureza humana. O pecado e seus efeitos constituem palavras chave na educação. Os pais e professores, ao avaliar a criança, precisam estar cientes de que sua mente, suas emoções, sua vontade, sua alma foram de tal maneira corrompidos pela queda que a criança não pode, por si mesma, fazer o que é bom e o que agrada a Deus.
Em última instância, as dificuldades que as crianças têm no seu aprendizado, por exemplo, da gramática, provém de diversas conseqüências diretas ou indiretas do pecado, tanto sobre a mente da criança, que já não aprende com a facilidade que deveria, pois o pecado afetou diretamente a razão humana, como na própria dificuldade inerente ao aprendizado de línguas, que em sua origem são resultado do castigo de Deus pelo orgulho humano ostentado na torre de Babel. Fatores agravantes à dificuldade no aprendizado de línguas decorrem de pecados como a preguiça, a negligência, a rebeldia, etc. Do reconhecimento de que o pecado que está intrinsecamente ligado ao coração da criança, a escola cristã enfatiza a necessidade de uma disciplina firme e bíblica.
Quanto ao aspecto da redenção, a escola cristã deve ser bastante cuidadosa, reconhecendo que este é um assunto bastante delicado e bem mais difícil de ser avaliado nas crianças. A única certeza que podemos ter é a de que elas são criaturas pecadoras regeneráveis. Se encontram-se ainda em estado de pecado ou se já foram alcançados pela graça de Deus, ou com que idade estão em condições de professar sua fé, são coisas difíceis de se determinar. É possível examinar entretanto, se a criança possui as marcas da redenção, a saber, o arrependimento pelo pecado e a fé em Cristo, e os seus frutos: a tristeza pelo pecado, a aceitação da disciplina e mudança de atitude, o prazer de obedecer a palavra de Deus. Essas características podem ser resumidas na expressão bíblica: “o temor do Senhor”. Em muitas crianças é possível perceber esse temor do Senhor, mas não se pode assumir que porque se trata de em uma escola reformada, todas as crianças são salvas, se não vimos nelas esses frutos.
Não obstante, deve-se ensiná-las esperando em Deus que Ele abençoe sua Palavra em seus corações, e que o Espírito Santo opere nelas a fé, o arrependimento e a obediência.




[1] Dentre os credos da religião cristã destacam-se o credo Apostólico, mais conhecido, o credo Niceno e o credo de Atanásio, o mais longo destes. Os principais símbolos de fé calvinistas são o Catecismo e a Confissão de Fé de Genebra, a Confissão de fé Gaulesa ou Francesa, a Confissão de Fé Escocesa, a Confissão Belga ou dos Países Baixos, a Segunda Confissão de Fé Helvética, o Catecismo de Heidelberg, os Trinta e Nove Artigos da Igreja da Inglaterra, os Cânones do Sínodo de Dort e a Confissão de Fé e os Catecismos Maior e Menor de Westminster.

[2] Textos como os seguintes falam sobre a revelação geral de Deus na Criação: “Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras de suas mãos” (Salmos 19:1). “Porquanto, o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos de Deus, assim o seu eterno poder como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidas por meio das coisas que foram criadas.” (Romanos 1:19,20)
[3] Os textos clássicos em que a Bíblia assevera sua inspiração são II Pedro 1:21: “Porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana, entretanto homens [santos] falaram da parte de Deus movidos pelo Espírito Santo” e II Timóteo 3:16: “Toda a Escritura é inspirada por Deus é útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça”.
[4] Referência bíblica- incluir./ Otto W. Heick, A history of Christian Thought, Vol. I (Philadelfia: Fortress Press, 1965), p. 450.
[5] Por Deus ser o sumo Bem, nenhuma das imperfeições dos homens ou do mundo podem ser atribuídas a Ele. Por outro lado, todas as virtudes que possam ser encontradas no homem devem ser-lhe atribuídas, só que em grau ilimitado e absoluto. ‘‘Toda boa dádiva e todo dom perfeito é lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança’’ (Tiago 1:17).
[6] (1 Jo 2:29; Ap 16:5). Ele é ‘‘o Juiz de toda a terra’’ (Gn 18:25), ‘‘o reto Juiz’’ (2 Tm 4:8); que ‘‘ama a justiça e o direito’’ (Sl 33:5; 37:28) e que é justo em todos os seus caminhos (Sl 145:17) e reto em seus juízos (Sl 119:137).

[7] Soterologia: doutrina da salvação.
[8] Essa penalidade tão severa está de acordo com o ensino bíblico como um todo, que constitui um princípio: a alma que pecar, esta morrerá” (Ez 18:4) e “o salário do pecado é a morte.” (Rm 5:23).
[9] O texto de Gênesis fala da maldição da terra pronunciada por Deus, que citou especificamente a agricultura, mas outros textos asseveram que essa maldição teve efeitos ainda mais profundos.